Agonia. Versos empilhados e uma dor latente de cabeça. Um transeunte lhe chamava a atenção, ao andar lá embaixo do prédio, na calçada. Andar? Não...melhor ficar no parapeito, debruçada, olhando os passos do homem na calçada. Sabe, nunca havia reparado que aquele homem vivia nesse prédio!
O homem andava, apressado. O que será que pensava neste momento do dia? Já se passava das 13:00, o calor do dia parecia entranhar no espírito. Era um homem careca, de meia idade, cabelos grisalhos que carregava uma pasta de executivo.
Helga o seguiu com o olhar, menos que com a curiosidade. Novo morador? O que estaria pensando nessa hora, com seus passos largos e apressados? O que haveria naquela pasta? Papéis, sonhos entrelaçados? Pedaços de burocracias de um cotidiano vazio? Não tinha tempo pra conjecturas.
Subitamente Helga lembrava que estava num parapeito. Que seu coração batia descompassado, que os segundos pareciam milhões de horas, mas eram apenas micronésimas fatias do tempo. Então, neste ínterim, pensava. Recordava de sua breve vida, planejava seus últimos instantes e sentia seus olhos marejados transbordarem em lágrimas que escorriam lentamente pela face ruborizada.
O condomínio era dividido em quatro blocos: Edifício Lucas, Edifício Liberdade, Bloco D o último bloco, que na verdade não tinha apartamentos: era uma área de lazer, com piscina e sala de jogos. A visão do primeiro edifício era voltada para um horizonte maravilhoso, enquanto o segundo tinha vista para o prédio anterior.
Sendo assim, Helga observava o horizonte, as tardes e a rua, suas conjecturas e o parapeito. Eugênia observava Helga de um dos melhores ângulos que se poderia imaginar: os apartamentos ficavam exatamente um em frente ao outro, de tal forma próximos, que era possível ouvir os sons produzidos pelos vizinhos.
Eugênia pensava interiormente que chegava a sentir o hálito da moça dependurada, tal era o pânico que começou a sentir em ver aquela situação em que não daria tempo de intervir, perguntar, concordar ou refutar. Então, em seus minutos controversos, apenas observava, sem conseguir prever os próximos instantes, apesar da intuição alertá-la de que algo estranho estava por vir.
Problemas da construção antiga, ainda da década de 1950, quando o condomínio foi projetado, para ser totalmente construído apenas quinze anos depois, pelo Senhor Lucas, dando origem ao nome de um dos prédios.
Inicialmente a curiosidade era apenas pela estranhez da moça. Eugênia gostava daqueles olhos claros, verdemente imponentes, contrastando com o rosto primariamente angelical. E ao observá-los tal diferentemente postos naquele andar do prédio, inclinados, entrou em transe, como se fosse hipnotizada por um pedido que talvez fosse de socorro e talvez fosse somente de alívio, por ter alguém a fitá-los.
Helga não se conteve a observar de longe seu objeto de análise. E se fosse apenas um visitante do prédio? Certamente que poderia não mais voltar e daí...curiosidade! Que haveria por trás daquele homem careca que lhe chamava tanto a atenção? Ou seria impacto? Mesmo à distância era um homem de impacto. Chamativo, talvez imponente. Interessante? Nem tanto. Ou talvez. Não tinha certeza. Mas gente, era só um homem! E ela era só uma mulher num parapeito.
Diante da dúvida, mudou o cenário e correu a perguntar Seu Eusébio a respeito do senhor, sem obter grande êxito. A descrição era muito vaga, a intimidade entre ambos, pequena e ainda restava saber de onde viera o homem e por onde entrara. Seu Eusébio apenas velava a paz do condomínio. Embora comunicativo, se atinha apenas às pessoas que lhe cumprimentavam, às feições dos rostos e à tranqüilidade do lugar.quem não respondia "bom dia" era só um ser imaginário e disforme, que poderia pertencer ou não àquele espaço. Até os porteiros divagam, pensou. E mudou de assunto.
Helga seguiu caminhando. Como não obtivera informações, voltou à sua tranqüilidade, ou como ela mesma descreveria, ao seu encorujamento de sempre.
Já Eugênia chegava, com sua mania avassaladora procurando por Marco. Escuta, aquele dia que nos falamos você passou a tarde no apartamento da morta?
Passei...
Mas, em busca de que, amora?
Em busca de informações, Eugênio. Ora essa! A menina morre, inquilina nossa, ninguém sente a sua ausência, você não acha estranho?
Bem...ela não suicidou?
Eu não acredito nisso.
A polícia concluiu isso, doce..
Era uma moça jovem, bonita... solitária, mas... penso que não chegasse a tanto. E outra: com toda a habilidade que tinha de ficar em pé no terraço, e nós a vimos por diversas vezes, você sabe disso, por que cargas d’água ia resolver de morrer daquele jeito numa segunda feira? Pensa bem, Marco... é uma forma de suicídio muito dolorosa... E outra coisa: tantos dias da semana, por que logo uma segunda-feira? A menina se espatifou toda. Não sobrou osso que não tivesse quebrado! Ai, Deus! Se fosse filha minha acho que estaria hoje aos cacos. Devemos é rezar pela alma dela.
Está ficando religiosa agora?
Não, você sabe que sou prática. Mas num caso desses... bem, e leve em consideração que eu gosto dela. Gostava, aliás – se bem que ela morreu e meu gostar é o mesmo. Talvez aumente, sei lá...
Deixe que os mortos enterrem seus mortos, Eugênia!
Pois por mim não se fala mais nisso. E foi fazer a janta dos dois.