sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

A tarde do terceiro dia


Helga estava concentrada em seus problemas, em sua carne, em sua solidão vadia. Cansava-se. Cansava-se constantemente dos gritos que lhe doíam a alma, por dentro e eu já não sabia mais se aquela era a minha dor verdadeira, ou a de Helga. Também, conjecturar por quê? Tanto fazia. É certo que eram uma dor e uma solidão parecidas.

Até então não me passava pela cabeça a sua origem. Sabia que Helga era uma moça de mais ou menos uns 23 anos, cética, não religiosa, sem amigos e estranha. Helga e seu estranho hábito de ficar no parapeito da janela, debruçada, quase à vista do semáforo. Helga e suas circuladas pela madrugada acendendo tudo quanto é luz na casa. Eu do prédio da frente, vivenciando cada passo. Eu nessa minha fissura pelos acontecimentos. Quanto mais sabia menos sabia. Aquela filosofia estranha, tantas dúvidas. É como se fosse uma irmã mais nova, uma prima muito próxima, que só aprendi a amar depois de morta. Helga e seu corpo esbugalhado da morte.

Então, me vem à cabeça: o que será que se tem depois da morte? Sim, porque enquanto uns dizem que tudo acaba, outros revelam que pode ser aí um novo começo. Eu não digo nada, na minha sagacidade. Eu sou uma escritora maluca, cética, mas pensativa e racional. Deixemos esta idéia de morrer de lado.

Helga anteontem tocava uma melodia tão doce...depois tão triste. Não sabia que Helga tocava, até ouvir aquele piano chorar, diante da noite. Sempre à noite as coisas aconteciam naquela casa. E eu muitas vezes me perguntava se se morria de dia e se nascia na madrugada. Ela era muito estranha. Mas nesse dia teve também um saxofone. Um saxofone, instrumento pelo qual eu fora apaixonada na minha juventude, e que agora evocava medos e tragédias na minha cabeça. Dentro dos meus silêncios aquela música não me tirava da janela. Sim, eu que me achava sem luz pra escreve, agora tinha uma imensa história. Um quebra-cabeças. Uma briga. Uma personagem viva, mesmo depois de morta. Mais viva depois de morta, aliás; porque eu nunca soube destas coisas.

Piano era uma das minhas grandes paixões de menina. Piano, poesia e amores. Todos andavam interligados na minha mente, e nas minhas saudades.

Minha avó com aqueles dedinhos salientes e frágeis...tocando...tocando! ai, que saudade. Minha avó, companheira de todas as horas... Helga parecia-se muito com ela. O mesmo cabelinho louro, os mesmos olhinhos esverdeados... A mesma incógnita na minha cabeça sobre o que pensava. Isso porque nunca uma ouviu falar da outra. Isso porque Helga, por mais perto que morássemos, nunca ouviu falar da minha vida que não fosse pra dizer aquele bom – dia amarelado. Mal sabia ela o quanto eu a observava, obstinadamente. Interesse científico ou poético, quem sabe. Poderia ser a filha que eu não tive. Poderia ser a irmã- saudade. Hoje preferi que ela fosse apenas a minha obra - prima, uma página nos meus escritos confusos.

Aquela era a tarde do terceiro dia. Havia três dias daquela cena horrendamente Azevediana na minha mente. Acabo recordando o spleen. Nunca fui achegada à segunda fase do Romantismo, apegada a esses termos tão obscenamente pintados na tela dos meus dias desde aquela tarde fatídica. Sei que neste terceiro dia eu ainda me esforçava pra lembrar os olhares da minha luneta. Mesmo antes dos ocorridos já havia planejado Helga como meu laboratório, antes por sua indiferença de comportamento que por sua complexidade. Eu estive enganada, embora não pela escolha, mas por minhas constatações sem análise.

Decidi subir ao apartamento da minha ex – inquilina. Como não havia parentes, amigos ou qualquer pessoa que reclamasse seu corpo, decidi eu mesma enterrá-la no jazigo da família, numa cerimônia decente. Convidei um pároco que me atendeu de prontidão, disse que se tratava de moça muito amiga e nós dois prosseguimos com a cerimônia, triste, fúnebre e despovoada. Não é todo dia que se cai de um prédio daquelas alturas. Nem é todo dia que...

Pedi a chave pro seu Eusébio, que estava à porta de casa. Atendeu-me prontamente, apenas pediu-me que o esperasse por uns segundos. O prédio parecia agora um lugar tenebroso, com suas paredes descascadas e saudosamente brancas. Hoje um branco...

Obrigada, seu Eusébio, vou lá ver se há alguma coisa de valor, ou se encontro alguma informação sobre a família da menina. Deve haver algum parente, amigo, conhecido, namorado... O que o senhor acha?

Bem, minha filha, faça isso mesmo. Talvez ainda não viram o acidente pela tv, talvez a mãe esteja até preocupada com a moça. Eu estarei aqui na portaria, qualquer coisa me chama.

Obrigada, obrigada..

E fui-me, certa de que lá haveria alguma coisa interessante. Sentei-me ao sofá macio e branco. De uma alvura que só uma pessoa que mora sozinha poderia conservar. O apartamento era mobiliado com um requinte único. O que me chamou a atenção foi uma obra de arte: um quadro de mais ou menos parede inteira de medida. A sala era ampla e arejada, e fora tomada pelo quadro. No meio, uns rabiscos, umas pichações, uns dizeres... Ao centro uma mulher, de bela face e olhos esbugalhados. O cenário de fundo era uma cidade que eu não conhecia. Mas o mais interessante foi a assinatura do canto esquerdo do quadro: Helga Herbelein. Era ela então, uma artista?!? Artista plástica ainda? Custei a acreditar. Entrei no quarto, era uma infinidade de tintas. Cores ainda frescas e recentemente escolhidas. Provavelmente sua última pintura fora algum traço daquele quadro. Imaginei que o desenho fosse uma forma de expressão doce da menina, o que me atraiu inteiramente. Sim, poderia ser que ela se tivesse o hábito de se entreter desenhando, pintando e ouvindo. Liguei o som, como que por um impulso e qual foi minha surpresa: a música da véspera! Melodicamente tocada ao piano por mãos ágeis, amáveis e sofredoras. Sim, pois que havia muito sentimento naquele concerto profundo. Tanto sentimento que mais uma vez quis ser Helga para reproduzir aquela música que já eu amava, e para pintar aquele quadro inacabado.

Foi então que me veio à mente a idéia mais absurda dos tempos: e se eu também pintasse aquele quadro? Idéia mais sem propósito, aliás, porque a pobre da artista dona daquele desenho jamais voltaria pra reclamar seus direitos autorais. Eugênia de Castro e Helga Herbelein, criador e criatura assinando pela mesma obra.

A música ensurdecedoramente me consumia. Pedi ao som que a repetisse quantas vezes me fosse possível ouvir, até que eu adivinhasse os pensamentos de Helga naquela data.

O cheiro de tinta era absurdo. Absurdo e frágil, diante da minha vontade. Absurda e frágil era minha consciência... Remexi nas tintas, mas não tive coragem.

Percebi que Helga era uma garota romântica, frágil; porém de personalidade forte. No centro do quarto uma foto imensa da menina, talvez com uns 15 anos de idade. Depois, uma foto pequena dela mesma - com a idade da sua queda: praticamente idênticas e na mesma posição. Os mesmos olhos tristes, mesmo com aquele sorriso enorme estampado no rosto. Seria uma menina triste enquanto viva? Incógnitas que talvez não saberei explicar.

Deitei-me na cama e ainda pude ouvir, ao longe o sonido da música tocando. Mas o sono foi me tomando, me tomando...sono...so no...só.. no...

Zzzzzzz

Helga estava com uma túnica branca e uma calça esverdeada.

Acordei como se ainda a visse, acenando em minha direção. Um aceno meigo, como se me pedisse que ficasse um pouco mais no apartamento. Fui embora apressada, já se passara muito tempo da minha saída. Marco acabava de chegar de seu trabalho, entretive-me com meu marido e guardei Helga no meu álbum de saudades. A chuva chovia como que para apagar a música do apartamento.


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